quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

BLACK MIRROR – QUINZE MILHÕES DE MÉRITOS

(2011)

Segundo episodio da primeira temporada




DEVORADOS PELO SISTEMA

     Esse episódio costuma não chamar tanta atenção diante da gama de situações que compõem a série Black Mirror. No entanto, seguindo o padrão de críticas sociais por meio de metáforas, “Quinze Milhões de Méritos” dispõe de críticas implícitas a respeito da cultura do consumo, divisão de classes, machismo, privilégios sociais, indústria pornô e a alienação provocada para garantir o funcionamento capitalismo.

(AVISO DE SPOILER)

       Essa crítica será uma análise descritiva do episódio, portanto, quem se importa com quebra de surpresas, assista primeiro para conferir a reflexão.

UNIVERSO

     O episódio se passa em um ambiente completamente artificial. Paredes e tetos de vidros são como telas de celulares que funcionam de modo touch e controlam também alguns itens matérias como, alimentos, sabonetes, pasta de dente, instrumentos etc. De modo que quase nada era verdadeiramente tocado. Percebe-se uma construção de universo que apesar de exagerada não se encontra distante, já que fica evidente a inspiração da estética de aparelhos celulares modernos tanto em design como em funcionamento.

PROPAGANDA
   Outra inspiração moderna é a presença da propaganda que constantemente se apresentava nas paredes, espelhos, telas ou aparelhos televisivos de forma barulhenta e chamativa. Na maioria das vezes havia elementos eróticos e exaltação a um estilo de vida distante, como o caso dos vencedores do reality show “Hot Shot”.
     Tudo é repleto de significado, como o fato de não poder fechar os olhos durante as propagandas ou de gastar “dinheiro” tanto para recusa-las, como para utilizar o programa ofertado.

TRABALHO
   
         As bicicletas posicionadas lado a lado, voltadas para telas que oferecem programas a serem comprados, em sua maioria de ordem sádica ou erótica enquanto as pessoas executam uma atividade mecânica e repetitiva para gerar energia aos privilegiados. A única opção para os menos alienados era uma estradinha monótona de desing simples.
      A crítica ao proletariado, já realizada anteriormente por “Tempos Modernos” retorna agora de forma mais densa e reforçada pela ideia do elevador onde os andares combinam com quem está em cima e embaixo no sistema econômico.

BONECOS

        Fora o local de trabalho e o refeitório, a forma das pessoas interagirem era por meio de um boneco virtual que as representava. Com ele, elas poderiam se “fazer presente” nos locais e comunicarem-se sem sair de seus quartos.
    Os acessórios comprados eram para essa representação já que as pessoas só possuíam uniforme cinza. Essa projeção virtual era a forma que os seres humanos se expressavam tal qual se faz atualmente em plataformas de redes sociais. Não deixa de apontar para a ilusão do consumo reforçada pela fala do protagonista ao elogiar a voz de sua amiga em detrimento desses mimos: “São apenas coisas, confetes, você tem algo real”.

OS PERSONAGENS

      Big Madsen, possui um ar levemente irritado. Ele é a representação daquele que questiona e se inquieta com o sistema, assim como Platão ao despertar para a ideia do que existe além da caverna. Daniel Kaluuya que agora recebeu méritos com o filme “Corra” já havia se mostrado talentoso dando vida ao nosso protagonista como um personagem que carrega uma indignação contida nos atos iniciais, e explode no monólogo final.

     A coadjuvante, Abi Khan, é doce e sonhadora. Ela possui um jeito alegre e descontraído de lidar com a realidade ao seu redor. Jessica Brown Findlay está bem no papel oferecendo uma interpretação ingênua e meiga, que mais a frente se mostra uma característica relevante para a representação da personagem.

    Os juízes do reality show apresentam comportamentos estereotipados. Temos o engraçado, o neutro e o agressivo. Eles representam o sistema e toda a sua capacidade de transformar as pessoas em produtos lucrativos.

      Existe um personagem caricato que representa a total alienação ao sistema. Ele trata os faxineiros com desprezo e consome todos os programas que lhe é oferecido.



HOT SHOT

     Aqui é o ápice do episódio. “Hot Shot” é o reality show que os personagens economizam tanto para participar e ganhar uma chance de viver do próprio talento com mais prestígio.
     Quando Abi vai para o programa, percebemos que a triagem de quem se apresenta não é feita por ordem de chegada. O fato de ela ser escolhida pela sua beleza revela que o programa possui os seus próprios interesses e cada concorrente é apenas uma peça para fazer a maquina girar mais rápido.

INDÚSTRIA DO ABUSO

      O líquido entorpecente que Abi precisa tomar antes de performar não é uma escolha ao acaso, já que é mais fácil de obter concessões dessa forma. Após a plateia apreciar o desempenho de Abi como cantora os juízes afirmam: “Você tem essa beleza pura e uma inocência interessante. Acho que os canais eróticos podem aproveitar isso”.
      O que está implícito na fala do juiz é uma sátira a indústria pornô (ou do abuso) que se aproveita de figuras, em sua maioria, com características de fragilidade e submissão. Novamente, a objetificação da mulher se faz presente como uma peça lucrativa ao mercado.

O CAPITALISMO

      Finalmente quando nosso protagonista se apresenta, ele faz um monólogo com todas as alterações de vozes e falta de ar, que é praticamente a metáfora do capitalismo. O final é pessimista, Platão não sai da caverna. O sistema inteligentemente se aproveita da situação para incorporar a mais um interesse. Ainda que triste, não deixa de ser uma boa reflexão para nos questionarmos acerca do que consumimos e propagamos. Fica aqui partes do monólogo de Big Madsen.
  “Você não veem pessoas, são objetos, e quanto mais falso melhor... Nós só temos estomago para isso... Só conhecemos objetos falsos e coisas para comprar. É como nos comunicamos, como nos expressamos. Comprando coisas... O ápice dos nossos sonhos é um chapéu novo para o nosso boneco. Um chapéu que não existe... Nós compramos besteiras que nem estão lá. Mostrem-me algo bonito, real e gratuito. Não tem não é? Isso nos quebraria. Estamos muito anestesiados para isso. Nossas mentes sufocariam. Não aguentaríamos coisas boas. Por isso que quando encontramos algo maravilhoso vocês racionam, e só então ele é ampliado, embalado e distribuído, através de dez mil filtros pré-designados até não ser nada além de uma série de luzes insignificantes, enquanto pedalamos todos os dias, indo pra onde? Fornecendo energia para que? Celas minúsculas e telas maiúsculas, celas maiores e telas maiores.”

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