quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

BLACK MIRROR – QUINZE MILHÕES DE MÉRITOS

(2011)

Segundo episodio da primeira temporada




DEVORADOS PELO SISTEMA

     Esse episódio costuma não chamar tanta atenção diante da gama de situações que compõem a série Black Mirror. No entanto, seguindo o padrão de críticas sociais por meio de metáforas, “Quinze Milhões de Méritos” dispõe de críticas implícitas a respeito da cultura do consumo, divisão de classes, machismo, privilégios sociais, indústria pornô e a alienação provocada para garantir o funcionamento capitalismo.

(AVISO DE SPOILER)

       Essa crítica será uma análise descritiva do episódio, portanto, quem se importa com quebra de surpresas, assista primeiro para conferir a reflexão.

UNIVERSO

     O episódio se passa em um ambiente completamente artificial. Paredes e tetos de vidros são como telas de celulares que funcionam de modo touch e controlam também alguns itens matérias como, alimentos, sabonetes, pasta de dente, instrumentos etc. De modo que quase nada era verdadeiramente tocado. Percebe-se uma construção de universo que apesar de exagerada não se encontra distante, já que fica evidente a inspiração da estética de aparelhos celulares modernos tanto em design como em funcionamento.

PROPAGANDA
   Outra inspiração moderna é a presença da propaganda que constantemente se apresentava nas paredes, espelhos, telas ou aparelhos televisivos de forma barulhenta e chamativa. Na maioria das vezes havia elementos eróticos e exaltação a um estilo de vida distante, como o caso dos vencedores do reality show “Hot Shot”.
     Tudo é repleto de significado, como o fato de não poder fechar os olhos durante as propagandas ou de gastar “dinheiro” tanto para recusa-las, como para utilizar o programa ofertado.

TRABALHO
   
         As bicicletas posicionadas lado a lado, voltadas para telas que oferecem programas a serem comprados, em sua maioria de ordem sádica ou erótica enquanto as pessoas executam uma atividade mecânica e repetitiva para gerar energia aos privilegiados. A única opção para os menos alienados era uma estradinha monótona de desing simples.
      A crítica ao proletariado, já realizada anteriormente por “Tempos Modernos” retorna agora de forma mais densa e reforçada pela ideia do elevador onde os andares combinam com quem está em cima e embaixo no sistema econômico.

BONECOS

        Fora o local de trabalho e o refeitório, a forma das pessoas interagirem era por meio de um boneco virtual que as representava. Com ele, elas poderiam se “fazer presente” nos locais e comunicarem-se sem sair de seus quartos.
    Os acessórios comprados eram para essa representação já que as pessoas só possuíam uniforme cinza. Essa projeção virtual era a forma que os seres humanos se expressavam tal qual se faz atualmente em plataformas de redes sociais. Não deixa de apontar para a ilusão do consumo reforçada pela fala do protagonista ao elogiar a voz de sua amiga em detrimento desses mimos: “São apenas coisas, confetes, você tem algo real”.

OS PERSONAGENS

      Big Madsen, possui um ar levemente irritado. Ele é a representação daquele que questiona e se inquieta com o sistema, assim como Platão ao despertar para a ideia do que existe além da caverna. Daniel Kaluuya que agora recebeu méritos com o filme “Corra” já havia se mostrado talentoso dando vida ao nosso protagonista como um personagem que carrega uma indignação contida nos atos iniciais, e explode no monólogo final.

     A coadjuvante, Abi Khan, é doce e sonhadora. Ela possui um jeito alegre e descontraído de lidar com a realidade ao seu redor. Jessica Brown Findlay está bem no papel oferecendo uma interpretação ingênua e meiga, que mais a frente se mostra uma característica relevante para a representação da personagem.

    Os juízes do reality show apresentam comportamentos estereotipados. Temos o engraçado, o neutro e o agressivo. Eles representam o sistema e toda a sua capacidade de transformar as pessoas em produtos lucrativos.

      Existe um personagem caricato que representa a total alienação ao sistema. Ele trata os faxineiros com desprezo e consome todos os programas que lhe é oferecido.



HOT SHOT

     Aqui é o ápice do episódio. “Hot Shot” é o reality show que os personagens economizam tanto para participar e ganhar uma chance de viver do próprio talento com mais prestígio.
     Quando Abi vai para o programa, percebemos que a triagem de quem se apresenta não é feita por ordem de chegada. O fato de ela ser escolhida pela sua beleza revela que o programa possui os seus próprios interesses e cada concorrente é apenas uma peça para fazer a maquina girar mais rápido.

INDÚSTRIA DO ABUSO

      O líquido entorpecente que Abi precisa tomar antes de performar não é uma escolha ao acaso, já que é mais fácil de obter concessões dessa forma. Após a plateia apreciar o desempenho de Abi como cantora os juízes afirmam: “Você tem essa beleza pura e uma inocência interessante. Acho que os canais eróticos podem aproveitar isso”.
      O que está implícito na fala do juiz é uma sátira a indústria pornô (ou do abuso) que se aproveita de figuras, em sua maioria, com características de fragilidade e submissão. Novamente, a objetificação da mulher se faz presente como uma peça lucrativa ao mercado.

O CAPITALISMO

      Finalmente quando nosso protagonista se apresenta, ele faz um monólogo com todas as alterações de vozes e falta de ar, que é praticamente a metáfora do capitalismo. O final é pessimista, Platão não sai da caverna. O sistema inteligentemente se aproveita da situação para incorporar a mais um interesse. Ainda que triste, não deixa de ser uma boa reflexão para nos questionarmos acerca do que consumimos e propagamos. Fica aqui partes do monólogo de Big Madsen.
  “Você não veem pessoas, são objetos, e quanto mais falso melhor... Nós só temos estomago para isso... Só conhecemos objetos falsos e coisas para comprar. É como nos comunicamos, como nos expressamos. Comprando coisas... O ápice dos nossos sonhos é um chapéu novo para o nosso boneco. Um chapéu que não existe... Nós compramos besteiras que nem estão lá. Mostrem-me algo bonito, real e gratuito. Não tem não é? Isso nos quebraria. Estamos muito anestesiados para isso. Nossas mentes sufocariam. Não aguentaríamos coisas boas. Por isso que quando encontramos algo maravilhoso vocês racionam, e só então ele é ampliado, embalado e distribuído, através de dez mil filtros pré-designados até não ser nada além de uma série de luzes insignificantes, enquanto pedalamos todos os dias, indo pra onde? Fornecendo energia para que? Celas minúsculas e telas maiúsculas, celas maiores e telas maiores.”

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

1917


(2019)

UM FILME IMERSIVO


Dirigido e roteirizado por Sam Mendes, mesmo diretor de “Beleza Americana” e “Foi Apenas um Sonho”, o longa conta uma história de dois soldados americanos, que durante a primeira guerra mundial, precisam atravessar o território inimigo para entregar uma mensagem, que pode salvar 1.600 vidas.
Com uma edição apurada, o filme aparenta ser rodado em dois planos-sequência, onde a “falta” de cortes sustenta uma tensão contínua. Vale destacar o trabalho de fotografia do Roger Deakins, que com uma edição nos limitando a enxergar na mesma perspectiva dos protagonistas, ressalta a sensação de risco e exposição, ao invés da violência de entretenimento já tão explorada em filmes do gênero.
“1917” é um retrato íntimo da guerra que apresenta a inospitalidade do ambiente, ao expor com proximidade visual e sonora os cadáveres, a lama, as ruínas, o frio, a fome, a exaustão e a experiência escatológica que compõe a guerra.
George Mckay (Scot) e Dean-Charles Chapman (Blake), estão bem nos papéis convencendo na expressão de trabalho em equipe, companheirismo e tensão controlada. É notável a importância crescente que a missão vai tomando para os protagonistas ao longo do filme, no entanto, vale pontuar que o destaque ao cumprimento da missão se sobrepõe ao gesto de poupar 1.600 vidas.

O diretor afirmou ter baseado sua obra nos relatos de guerra que o seu avô, Alfred Mendes, fazia em sua infância. "Essa história, ou esse fragmento, permaneceu comigo e obviamente eu a ampliei e fiz mudanças enormes, mas a essência é a mesma", relembra o diretor. O resultado é uma experiência imersiva digna das telonas.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

O LEITOR / THE READER



(2009)

SENSÍVEL

O filme conta a história do romance entre Michael e Hanna, e como essa relação vem repercutir anos depois na vida de ambos, após se encontrarem em contextos completamente diferentes e até mesmo antagônicos.
Trata-se de um filme extremamente sensível. Apesar de declaradamente melancólico, o roteiro guarda reviravoltas discretas que ressignificam os detalhes do primeiro ato.
A fotografia extremamente nítida com a câmera cortando para planos fechados no rosto dos personagens deixam as imagens falar por si só. Não existem diálogos muito longos, mas o olhar dos personagens é sempre ressaltado pela câmera, horas demonstrando como se sentem, horas permitindo que decifremos o que for possível.
Todo o elenco está muito bem, ambos os atores que interpretam o Michael convergem nas expressões de gentileza e insegurança que compõe o personagem. David Kross (Michael jovem) oferece uma interpretação mais inocente e desconcertada acerca do seu lugar no mundo. Já Ralph Fiennes (Michael adulto) interpreta um homem muito sério, pensativo e de olhar sensível. Kate Winslet também está muito bem. Ela da vida a Hanna Schmitz, uma personagem endurecida e misteriosa que com ao longo do filme vamos desvendando.
O leitor é uma obra atenta aos detalhes, e principalmente, um filme que fala sobre como o passado nos marca e nos constitui. A frase do protagonista no ato final “você pensa muito no passado?” fica como um questionamento simbólico para a mensagem do filme.

sábado, 1 de fevereiro de 2020

REQUIÉM PARA UM SONHO / REQUIEM FOR A DREAM




(2001)

UMA CINTA COMPRESSORA

“Réquiem Para um Sonho” é o segundo longa do Darren Aronofsky. Baseado no livro de mesmo nome  de Hubert Selby Jr., possui como premissa básica o vício e seus desdobramentos. Inicialmente são apresentados de maneira descontraída os personagens Sara Goldfarb, Harry Goldfarb, Marion Silver e Tairone Love.
            Harry (Jared Leto) é amigo de Tairone (Marlon Wayans) e em conjunto com sua namorada Marion (Jennifer Conelly) decidem entrar no mundo do tráfico para bancar os seus sonhos. O filme não se estende no desenvolvimento desses sonhos como meta, mas foca nos caminhos utilizados para alcançá-los. O filme é episódico dividido em três estações do ano, respectivamente, verão, outono e inverno. A escolha dessas estações não são por acaso, pois funcionam como uma boa metáfora para pontuar o ritmo dos acontecimentos.
“Requiem para um Sonho” não é uma obra sobre vício em drogas, especificamente, pois mais do que a toxicomania apresenta ao espectador as diferentes manifestações da compulsão; seja por comida, televisão, sexo e até mesmo uma ideia. A obsessão das personagens é tratada como uma possível solução para os seus problemas, dramas pessoais e fuga da realidade.
Uma marca do filme é o estilo da edição que o diretor denominou Hip Hop montage. Essa consiste em cortes rápidos (nesse foram utilizados mais de 2000) de cenas em alta velocidade combinando sons de maneira quase musicada, o que torna a experiência muito sinestésica e dialoga com a sensação de prazer imediato proporcionada pelo consumo de heroína.
É preciso destacar a trilha sonora do Clint Mansell que ajuda a criar uma atmosfera de suspense e melancolia, lembrada pela faixa “Lux Aeterna”, musica tema do filme.
O elenco está à altura já que o filme, apesar de difícil de digerir, não deixa de ser uma proposta artística e reflexiva sobre um recorte social. Jared Leto e Marlon Wayans transmitem a empolgação acerca de uma nova ideia que promete prosperidade, assim como o senso de constrangimento e melancolia que algumas cenas exigem. Jennifer Conelly interpreta uma moça apaixonada e intensa com uma sensualidade jovial e também não deixa a desejar quando o roteiro lhe direciona para situações de desespero, intimidação e repulsa. Ellen Burstyn no papel de Sara Goldfarb está sem precedentes, sendo convincente ao expressar suas emoções, desespero, fanatismo e desorientação.

ANÁLISE DOS ELEMENTOS (COM SPOILERS)
          Tendo em vista a composição simbólica do filme, vale a pena destrinchar alguns elementos que estão presentes no longa e são responsáveis para a transmissão de muitas mensagens.

AS ESTAÇÕES
        Primeiramente o fato das estações do ano serem utilizadas de forma episódica não é uma escolha aleatória, mas sintoniza com os acontecimentos exibidos. Sendo o verão a primeira delas, a ascensão dos personagens na busca dos seus objetivos é depressa, a edição com cortes apressados e trilha sonora intensa marcam a fase onde euforia e entorpecimento tomavam de conta dos personagens.
        As próximas estações são exatamente a queda do ritmo e das circunstâncias. Como o próprio nome em inglês indica, no outono (fall) tudo começa a desmoronar, e no inverno, que compõe o terceiro ato, é retratado o desconforto e desamparo que um frio extremo pode provocar. Propositalmente a primavera nunca chega, não passando de um sonho.

OS MÉDICOS
Não se pode deixar de reparar a maneira como a sociedade médica foi representada no filme, caracterizada pela impessoalidade e automatismo da profissão.
Quando a personagem Sara precisa fazer uma consulta, a câmera quase nunca foca no rosto do médico. No ambiente hospitalar, essa mesma personagem é manuseada de um lado para o outro, decisões acerca do que será feito com ela são tomadas sem o conhecimento dela nos deixando igualmente perdidos. O diretor “abusa” de planos fechados para mostrar algum material hospitalar sendo utilizado de forma invasiva e até ameaçadora, enquanto a equipe médica parece estar alheia a todas essas sensações.

O TÍTULO
            A palavra “réquiem” vem do latim “requiem” que significa descanso. Era a palavra utilizada para iniciar o ritual nas antigas missas fúnebres típicas da Igreja Católica. “Requiem aeternam dona eis, Domine”, que significa “Senhor, concede-lhes o eterno descanso”.
Dessa forma, o título avisa o que está por vir. De maneira figurada, a mensagem de um sonho morto é adequada, já que o que presenciamos é um retrato da degradação humana que de forma artística e visceral que exibe personagens perdidos e sonhadores em situações extremas.

PARASITA / GISAENGCHUNG


(2019)

UM FILME ANTAGÔNICO

Parasite é um filme coreano que conta a história de uma família muito pobre que sobrevive de subempregos em uma cidade grande. De forma muito perspicaz a essa família passa a manipular e se aproveitar de uma família burguesa, porém as coisas saem um pouco do esperado.
Parasite é uma forte crítica social que mostra os menores se virando como podem enquanto que maiores estão em suas vidas completamente confortáveis e alheios a essas diferenças.
O fato dos protagonistas tomarem atitudes questionáveis acerca dos patrões propõe uma reflexão interessante, já que no filme, propositalmente os ricos são retratados como pessoas ingênuas e facilmente manipuláveis. É o tipo de duelo onde não se pode estabelecer o mocinho e o herói, sendo precisamente essa falta de definição “amarradinha” acerca dos personagens, que abre espaço para discussões metafóricas e possíveis interpretações.
Em termos técnicos, a iluminação muda consideravelmente quando os personagens estão em ambientes de diferentes classes sociais, tornando a classe alta sempre muito iluminada e com cores fortes enquanto que, para a classe baixa, a composição com cores mortas ressaltam o desconforto do ambiente. A trilha sonora é composta de músicas clássicas exasperadas, algumas vezes combinadas com cenas trágicas em câmera lenta dando um tom satírico ao momento.
As atuações são excelentes. Destaques para Choi Woo-shik interpretando Ki-woo (o caçula da família principal) que é a porta de entrada do filme. Ele da vida a um personagem corajoso e articulado. Park So-Dam também está muito bem no papel. Ela interpreta uma garota extremamente sínica com ótima capacidade de improviso. Jang Hyai Jin interpreta a mãe da família protagonista. Uma personagem ágil e enérgica. O pai vivido pelo Kang Hoo Song é um personagem esperto, que parece estar sempre muito atento para sustentar as situações colocadas pelo filme. Sun-kyun lee e cho yeo-jeong, executam o casal fútil, materialista e um pouco tolos, o que ressalta o comentário social do filme.
Com relação à família de classe baixa, vale ressaltar como o senso de parceria e coletividade entre os protagonistas se da de forma dinâmica e carismática. Parasite, trata-se de um trabalho cinematográfico magnífico, que propõe entretenimento e reflexão. Com um roteiro elaborado e apuros técnicos o filme transmite mensagens sociais sem precisar ser expositivo.

ANÁLISE DE ELEMENTOS (COM SPOILERS)

O CHEIRO

 Os comentários que os patrões lançam sobre o odor dos funcionários merecem destaque. Em algumas cenas, era indicado como um cheiro incômodo sem justificativas óbvias. Além disso, outras cenas demonstram que o cheiro se estendia para todos os funcionários de classe baixa.
É possível interpretar essa atitude como uma representação de preconceito, ou um distanciamento “natural” entre as classes. O disfarce da atitude do bom patrão é desmascarado pela repulsa ao odor de seus funcionários.

A ESCADA

Nesse filme, a famosa frase “o de cima sobe e o de baixo desce” é representada literalmente por escadas que fazem a conexão entre os dois mundos. Enquanto que todos os personagens de baixo poder aquisitivo estão em ambientes subterrâneos, comprimidos e desconfortáveis, os personagens materialmente privilegiados, estão em ambientes literalmente altos, amplos, e exorbitantes. No entanto, esse mesmo ambiente “arejado” e limpo, possui uma arquitetura moderna com diversos espaços vazios que expressam um ar de frieza para a casa, combinando bastante com a relação entre seus moradores.

O TÍTULO

De forma metafórica, o título retrata o parasitismo dos protagonistas que, tais quais os parasitas que sobrevivem de outros organismos causando-lhes danos, essas pessoas se aproveitam das circunstâncias para sobreviver. Desde o início, esse comportamento é anunciado com o roubo do Wi-fi e o gesto que abrir as janelas para “aproveitar” a fumaça de dedetização da rua. Da mesma forma, “parasitam” uma família, eliminando o que estiver pelo caminho, ainda que sejam pessoas que compartilhem da mesma realidade.

PATERSON



(2017)

UM FILME SUFICIENTE


Nessa bela obra dirigida e roteirizada pelo Jim Jarmusch, o tom aguçado para as questões cotidianas permanece. “Paterson” conta a história de um motorista de ônibus que nas horas vagas escreve poemas sobre elementos do seu dia, como sua caixa de fósforos ou o trecho de uma música antiga.
O protagonista é um sujeito observador e discreto. A sua naturalidade e introspecção foi muito bem representada por Adam Driver, que sempre expressa uma satisfação silenciosa com o rumo do seu dia ainda que teoricamente banais.
O filme é propositalmente cíclico. Paterson acorda todo dia no mesmo horário, vai trabalhar, passeia com o cachorro e bebe no mesmo bar antes de voltar para casa. Não existem altos e baixos nessa narrativa, é a história de um homem que aprecia os momentos do seu dia com conformação e argúcia.
Esse senso de satisfação com a vida é ressaltado pelo Sr. Donny, personagem caricato presente na trama para reclamar do que acontece e contrastar com o conformismo de Paterson.
A obra mantém o tom com fluidez, acompanhado de uma fotografia melancólica, que muitas vezes retrata a visão do protagonista, e repete enquadramentos como forma de reforçar o tom cotidiano.
A trilha sonora minimalista marca muito bem o andamento da história. Um detalhe que chama atenção é a presença de uma mesma música nos momentos em que Paterson escreve seus poemas, justamente pela forma como ela antecipa a atitude do personagem, como se pudéssemos acompanhar a chegada de uma nova inspiração poética.
O diretor apresenta ainda alguns padrões intrigantes de repetição, como o design em preto e branco utilizados por Laura – mulher de Paterson – nas cortinas, roupas, quadros e a aparição de irmãos gêmeos ao longo do filme.
Os momentos do protagonista com a esposa expressam a sensação de afeto. Eles conversam sobre sonhos, acontecimentos, gostos ou até mesmo observações atípicas, como o cheiro um do outro. Tudo se dá em tom natural e sem necessariamente chegar algum lugar com esses diálogos. Dócil e sonhadora, Laura, brilhantemente interpretada por Golshifteh Farahani, também sustenta a atmosfera de afeto e interesse entre eles.
É interessante como Jarmusch cria personagens enamorados sem apelar para tramas antagônicas onde o casal precisa passar por um momento de conflito para se reconciliar. Aqui é notável um forte senso de parceria e interesse pela vida do outro.
Paterson, por fim, apresenta-se como uma obra minimalista, afetuosa, de ritmo constante, porém, extremamente fluido, que lança um olhar sensível aos acontecimentos do cotidiano.

A VIDA INVISÍVEL


(2019)

UM FILME CLAUSTROFÓBICO

O filme se passa no Rio de Janeiro dos anos 1950 e conta a história de duas irmãs que sofrem com as imposições de uma sociedade opressora e patriarcal. A obra é baseada no livro “A vida Invisível de Eurídice Gusmão” de Martha Batalha.
Esse novo trabalho do diretor Karim Aïnouz não possui a estética naturalista de “Madame Satã” e “O céu de Suely”, também assinados por ele, e assume um formato mais sofisticado. No entanto, não perde em comoção e melancolia quando necessário.
A estética do filme também é um ponto forte. A fotografia inicialmente granulada vai mudando de acordo com a cronologia. A medida que o tempo passa, ela assume tons mais nítidos e modernos. A trilha sonora, composta em sua maioria por músicas clássica, cria diversas atmosferas, até mesmo de suspense. O diretor utiliza muitos planos fechados especialmente em cenas de forte carga emocional, onde o olhar dos personagens falam por si.
O interessante de “A Vida Invisível” é a forma como evidencia o peso dos papeis sociais. Aqui, as mulheres respondem como podem ao contexto em que se encontram, e apesar de termos personagens enérgicas, posicionadas e em alguns momentos até ferozes, elas simplesmente são encurraladas pelas circunstâncias. Já para os personagens masculinos, a variedade de suas posturas é acobertada pelo privilégio social. Essas escolhas não foram por acaso já que o cineasta afirmou que ele não pretendia falar sobre vítimas, mas sobre resistência.
O elenco está muito bem. As irmãs Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler) têm características que contrapõem umas às outras, são opostos que se complementam. Enquanto que Guida é refutadora e, desde o início, demonstra se opor às convenções impostas, Eurídice busca a liberdade sem fugir do que lhe é socialmente esperado.
Carol Duarte (Eurídice) transmite todo o senso de desespero e deslocamento que a personagem passa enquanto vive a vida como se estivesse interpretando a “boa moça” em uma peça de teatro. Julia Stockler (Guida), por sua vez, passa a postura endurecida que precisou tomar diante das intercorrências da vida. Apesar de se apresentarem em diferentes situações, o sofrimento de ambas gira em torno do lugar da mulher na sociedade.
Para além das protagonistas, os coadjuvantes também atendem às expectativas. Antônio Fonseca, que interpreta Manuel, pai de Guida e Eurídice, vive um homem declaradamente machista e autoritário. Ana (Flávia Gusmão) – mãe das meninas – é a típica representação da mulher oprimida, que abaixa a cabeça diante das imposições do marido, acatadas de forma absoluta e acima do bem-estar familiar. Gregório Duvivier dá vida a Antenor, marido de Eurídice, um funcionário dos Correios tolo que não assume as posições autoritárias típicas do chefe de família da época, mas se mantém em uma postura alienada e medíocre. O filme também conta com a participação de Fernanda Motenegro que brilha nas cenas em que aparece, sendo também uma bela homenagem a essa artista.
 “A Vida Invisível” é um filme que vale a pena ser assistido e discutido, pois, trata-se de uma narrativa “antiga” que aborda temas atuais. É um filme que não precisa falar sobre feminismo para trazer o seu conteúdo e deixa claro, o que existe de antigo que ainda se faz tão contemporâneo em nossa sociedade.

AMANTES ETERNOS / ONLY LOVERS LEFT ALIVE




(2014)

ELEGANTE

Nesta obra de Jim Jarmusch que retrata vampiros contemporâneos, acompanhamos a vida do casal Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton). O filme inicia com ambos vivendo em diferentes países – ela morando em Tânger e ele em Detroid – e devido ao estado melancólico que Adam se encontra, Eve decide visitá-lo. Assim, é estabelecida a premissa básica do filme.
Em termos de roteiro, este longa foge da narrativa convencional. Não existe uma história com altos e baixos a ser contada, é praticamente o espectador acompanhando a vida cotidiana dos personagens e como eles possuem um olhar diferenciado para o mundo, já que são seres antigos, que estiveram presentes em distintos momentos da história da humanidade.
Naturalmente, por se tratarem de vampiros, encontram-se características básicas dos mesmos, são seres noturnos que se alimentam de sangue. A madeira também continua como um instrumento letal, mas a escolha do diretor para explorar esses detalhes se da de maneira sutil e original. O sangue, por exemplo, não é apenas um alimento, mas é apresentado como uma espécie de droga que é tomada de forma ritualística, acompanhando o senso estético dos personagens. Dessa forma o uso do sangue que é tão típico para retratar essas criaturas toma um aspecto metafórico, como uma representação de obsessão, prazer extremo e sinestesia.
Vale ressaltar como a direção ostenta da fotografia para expressar o efeito entorpecente da substância. Muito uso da câmera em planos fechados em sintonia com o movimento de cabeça dos personagens, que, em conjunto com a trilha sonora constante retratam muito bem o ar de alteração de consciência.
Ainda a respeito da fotografia, é notável o contraste da pele muito clara dos personagens, com o cenário escurecido e noturno. A câmera muitas vezes se arrasta para um close lento ou acompanha o passo do personagem em um ritmo desacelerado e elegantemente alinhado com a trilha.
A respeito dos personagens, o diretor se ateve a explorar como seria a mente desses seres que viveram e viram de tudo ao longo dos séculos. Os vampiros são nesse caso, grandes eruditos, conhecedores de idiomas, músicas, culturas, obras literárias e teorias científicas. O diálogo entre Adam e Eve é culto e refinado, sem perder o tom cotidiano e detalhista que o filme propõe.
A trilha sonora premiada no Festival de Cannes, composta de faixas de soul, rock e músicas instrumentais minimalistas que servem tanto para pontuar situações, como para o deleite dos personagens, pois, eles se mostram admiradores fundamentados nesse ramo.
A respeito das atuações, todo o elenco dá um show. Tom Hiddleston convence muito bem como um músico e intelectual frustrado, e Tilda Swinton interpreta perfeitamente uma criatura misteriosa e observadora, se interessa pelas pequenas belezas do cotidiano.
A personagem da Tilda é atualizada, otimista e cuidadosa, seu equilíbrio contracena muito bem com o Adam, que expressa um ar mais mórbido e pessimista, apesar de igualmente intelectual e contemplativo. A química entre os dois é muito forte e interessante de acompanhar.
Também compõe o elenco principal, Mia WasikowskaJohn Hurt. O personagem de John encorpa a característica do sábio, como uma espécie de ancião dos vampiros, enquanto que Mia interpreta a irmã de Eva. Ela atende muito bem ao tom dissimulado e jovial da personagem, sua presença trás energia e conflito para a narrativa.
“Amantes Eternos” é belo, elegante, excêntrico e o que se pode chamar de um “gosto adquirido”. O ideal de vampiro foge do suspense enérgico para dar lugar ao contemplativo e minimalista.

Estou Pensando em Acabar com Tudo

  DESAFIANDO A NECESSIDADE DE “ENTENDER TUDO” Charlie Kaufman que já havia se mostrado eficiente para criar uma melancolia não justificada...