(2011)
Segundo episodio da primeira temporada
DEVORADOS
PELO SISTEMA
Esse episódio costuma não chamar tanta atenção diante da
gama de situações que compõem a série Black Mirror. No entanto, seguindo o
padrão de críticas sociais por meio de metáforas, “Quinze Milhões de Méritos”
dispõe de críticas implícitas a respeito da cultura do consumo, divisão de
classes, machismo, privilégios sociais, indústria pornô e a alienação provocada
para garantir o funcionamento capitalismo.
(AVISO DE SPOILER)
Essa crítica será uma análise descritiva
do episódio, portanto, quem se importa com quebra de surpresas, assista
primeiro para conferir a reflexão.
UNIVERSO
O episódio se passa em um ambiente completamente artificial.
Paredes e tetos de vidros são como telas de celulares que funcionam de modo touch
e controlam também alguns itens matérias como, alimentos, sabonetes, pasta de
dente, instrumentos etc. De modo que quase nada era verdadeiramente tocado.
Percebe-se uma construção de universo que apesar de exagerada não se encontra
distante, já que fica evidente a inspiração da estética de aparelhos celulares
modernos tanto em design como em funcionamento.
PROPAGANDA
Outra inspiração
moderna é a presença da propaganda que constantemente se apresentava nas
paredes, espelhos, telas ou aparelhos televisivos de forma barulhenta e
chamativa. Na maioria das vezes havia elementos eróticos e exaltação a um
estilo de vida distante, como o caso dos vencedores do reality show “Hot Shot”.
Tudo é repleto de significado, como o fato de não poder
fechar os olhos durante as propagandas ou de gastar “dinheiro” tanto para
recusa-las, como para utilizar o programa ofertado.
TRABALHO
As bicicletas posicionadas lado a lado, voltadas para
telas que oferecem programas a serem comprados, em sua maioria de ordem sádica
ou erótica enquanto as pessoas executam uma atividade mecânica e repetitiva
para gerar energia aos privilegiados. A única opção para os menos alienados era
uma estradinha monótona de desing simples.
A crítica ao proletariado, já realizada anteriormente por
“Tempos Modernos” retorna agora de forma mais densa e reforçada pela ideia do
elevador onde os andares combinam com quem está em cima e embaixo no sistema
econômico.
BONECOS
Fora
o local de trabalho e o refeitório, a forma das pessoas interagirem era por
meio de um boneco virtual que as representava. Com ele, elas poderiam se “fazer
presente” nos locais e comunicarem-se sem sair de seus quartos.
Os acessórios comprados eram para
essa representação já que as pessoas só possuíam uniforme cinza. Essa projeção
virtual era a forma que os seres humanos se expressavam tal qual se faz
atualmente em plataformas de redes sociais. Não deixa de apontar para a ilusão
do consumo reforçada pela fala do protagonista ao elogiar a voz de sua amiga em
detrimento desses mimos: “São apenas coisas, confetes, você tem algo real”.
OS PERSONAGENS
Big
Madsen, possui um ar levemente irritado. Ele é a representação daquele que
questiona e se inquieta com o sistema, assim como Platão ao despertar para a
ideia do que existe além da caverna. Daniel Kaluuya que agora recebeu méritos com o filme “Corra” já havia se
mostrado talentoso dando vida ao nosso protagonista como um personagem que
carrega uma indignação contida nos atos iniciais, e explode no monólogo final.
A
coadjuvante, Abi Khan, é doce e sonhadora. Ela possui um jeito alegre e
descontraído de lidar com a realidade ao seu redor. Jessica Brown Findlay
está bem no papel oferecendo uma interpretação ingênua e meiga, que mais a
frente se mostra uma característica relevante para a representação da
personagem.
Os juízes do reality show apresentam
comportamentos estereotipados. Temos o engraçado, o neutro e o agressivo. Eles
representam o sistema e toda a sua capacidade de transformar as pessoas em
produtos lucrativos.
Existe um personagem caricato que representa a total
alienação ao sistema. Ele trata os faxineiros com desprezo e consome todos os
programas que lhe é oferecido.
HOT
SHOT
Aqui é o ápice do episódio. “Hot
Shot” é o reality show que os personagens economizam tanto para participar e
ganhar uma chance de viver do próprio talento com mais prestígio.
Quando Abi vai para o programa, percebemos que a triagem
de quem se apresenta não é feita por ordem de chegada. O fato de ela ser
escolhida pela sua beleza revela que o programa possui os seus próprios
interesses e cada concorrente é apenas uma peça para fazer a maquina girar mais
rápido.
INDÚSTRIA
DO ABUSO
O líquido entorpecente que Abi
precisa tomar antes de performar não é uma escolha ao acaso, já que é mais
fácil de obter concessões dessa forma. Após a plateia apreciar o desempenho de
Abi como cantora os juízes afirmam: “Você tem essa beleza pura e uma inocência
interessante. Acho que os canais eróticos podem aproveitar isso”.
O que está implícito na fala do juiz é uma sátira a
indústria pornô (ou do abuso) que se aproveita de figuras, em sua maioria, com
características de fragilidade e submissão. Novamente, a objetificação da
mulher se faz presente como uma peça lucrativa ao mercado.
O
CAPITALISMO
Finalmente
quando nosso protagonista se apresenta, ele faz um monólogo com todas as
alterações de vozes e falta de ar, que é praticamente a metáfora do
capitalismo. O final é pessimista, Platão não sai da caverna. O sistema
inteligentemente se aproveita da situação para incorporar a mais um interesse.
Ainda que triste, não deixa de ser uma boa reflexão para nos questionarmos
acerca do que consumimos e propagamos. Fica aqui partes do monólogo de Big
Madsen.
“Você
não veem pessoas, são objetos, e quanto mais falso melhor... Nós só temos
estomago para isso... Só conhecemos objetos falsos e coisas para comprar. É
como nos comunicamos, como nos expressamos. Comprando coisas... O ápice dos
nossos sonhos é um chapéu novo para o nosso boneco. Um chapéu que não existe...
Nós compramos besteiras que nem estão lá. Mostrem-me algo bonito, real e
gratuito. Não tem não é? Isso nos quebraria. Estamos muito anestesiados para
isso. Nossas mentes sufocariam. Não aguentaríamos coisas boas. Por isso que
quando encontramos algo maravilhoso vocês racionam, e só então ele é ampliado,
embalado e distribuído, através de dez mil filtros pré-designados até não ser
nada além de uma série de luzes insignificantes, enquanto pedalamos todos os
dias, indo pra onde? Fornecendo energia para que? Celas minúsculas e telas
maiúsculas, celas maiores e telas maiores.”